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Opinião

A caminho de um mundo pós-dólar
Publicado em 02/06/2020 às 11h15
A globalização irrestrita acabou. Esta não é uma afirmação controvertida a esta altura por razões óbvias, da retração pós-covid-19 de cadeias de fornecimento internacionais complexas à dissociação dos EUA e China. É difícil imaginar um restabelecimento da mentalidade neoliberal da década de 90, mesmo que Joe Biden vença as eleições presidenciais americanas ou a União Europeia experimentar um momento de renovada coesão na resposta à pandemia.

É mais provável que o mundo se torne tripolar - ou pelo menos bipolar -, com uma maior regionalização do comércio, migração e até mesmo dos fluxos de capital no futuro. Há todos os tipos de motivos para isso, alguns perturbadores (aumento do nacionalismo) e outros benignos (um desejo por economias locais mais resilientes e inclusivas).

É eloquente o fato de a China estar sendo recentemente grande compradora de ouro, como ´hedge´ contra o valor de suas posições em dólar. Ela também testa sua moeda digital, a e-RMB, sendo a primeira nação soberana a lançar uma criptomoeda garantida pelo banco central

Isso suscita uma questão que tem sido vista como controvertida - estaremos entrando num mundo pós-dólar? Esta questão pode parecer uma falácia, uma vez que mais de 60% das reservas cambiais do mundo estão em dólar, que também é usado na ampla maioria do comércio mundial. O estímulo recente do Federal Reserve (Fed) aos mercados do dólar fora dos EUA, como resposta à crise do coronavírus, deu um impulso adicional ao domínio global do dólar.

Como resultado, muita gente vai repetir o mantra de que nesta, assim como em muitas outras coisas, "você não tem como brigar com o Fed". O domínio do sistema bancário dos EUA e a liquidez do dólar, ambos respaldados pelo Fed, darão à moeda americana uma supremacia indiscutível no sistema financeiro mundial e nos mercados de capitais por um tempo indefinido.

Outros afirmam que "você não pode substituir uma coisa por nada". Com isso eles querem dizer que muito embora China, Rússia e outros países emergentes (assim como algumas nações ricas como a Alemanha) adorariam se afastar do domínio do dólar, eles não têm alternativas reais. Esse desejo é particularmente acentuado num mundo de finanças cada vez mais transformadas em armas.

Considere as iniciativas recentes de Pequim e Washington para conter a insolvência do setor privado nos mercados de capitais um do outro. Mesmo assim, o euro, que representa cerca de 20% das reservas globais, não pode ser comparado em termos de liquidez e ainda há muitas dúvidas sobre o futuro da zona do euro. O mercado do ouro é apertado demais, conforme evidenciado pelo fato de que agora é praticamente impossível comprar o metal físico.

Mas há as estatísticas econômicas e há as políticas. É eloquente o fato de a China estar sendo recentemente uma grande compradora de ouro, como "hedge" (proteção) contra o valor de suas posições em dólar. Ela também está testando seu próprio regime de moeda digital, a e-RMB, sendo com isso a primeira nação soberana a lançar uma criptomoeda garantida pelo banco central. Pode-se imaginar que seria fácil empregá-la em toda a órbita da Iniciativa do Cinturão e da Rota promovida pela China, como uma alternativa atraente para países e empresas que querem negociar uns com os outros sem ter de usar dólares para fazer "hedge" do risco cambial.

Só isso não deverá representar um desafio para a supremacia do dólar, embora tenha sido suficiente para levar o ex-secretário do Tesouro dos EUA Hank Paulson, um homem que não pega leve, a escrever recentemente um ensaio sobre o futuro do dólar. Mas isso não está acontecendo no vazio.

O plano da Comissão Europeia de aumentar seu orçamento de recuperação para os socorros financeiros para a covid-19, emitindo dívida que será paga com taxas ao nível da União Europeia, poderá se tornar a base de uma verdadeira união fiscal e, no final das contas, os Estados Unidos da Europa. Se isso acontecer, então posso imaginar que muito mais gente vai querer ter mais euros em mãos.

Também posso imaginar um enfraquecimento contínuo dos laços entre os EUA e a Arábia Saudita, o que por sua vez poderá minar o dólar. Entre os muitos motivos dos bancos centrais e os investidores globais manterem dólares, um importante é que os preços do petróleo são determinados em dólares. As ações contínuas da Arábia Saudita para minar a produção de xisto dos EUA expuseram uma cisão nas relações entre o governo do presidente Donald Trump e Riad. É improvável que um futuro presidente Biden, que provavelmente seguiria a posição pró-Irã de Barack Obama, venha a reparar isso.

Mesmo com os preços do petróleo tão baixos, o presidente do Fed de Dallas, Robert Kaplan, disse-me recentemente que a independência energética continua sendo "estrategicamente importante" para os EUA e que "ainda haverá uma produção substancial de xisto nos EUA no futuro". Então, quem vai preencher o vácuo saudita? Muito provavelmente a China, que vai querer que os preços do petróleo sejam estabelecidos em yuans. Um mundo dissociado poderá ser um mundo que exija menos dólares.

Finalmente, há dúvidas sobre a maneira como o apoio não oficial do Fed aos gastos do governo americano na esteira da pandemia politizou a oferta de dinheiro. A questão aqui não é realmente o risco de uma inflação ao estilo da República de Weimar, pelo menos não no curto prazo. Trata-se mais de confiança. Algumas pessoas podem argumentar que o dólar é uma moeda global e que sua sorte realmente não depende das percepções sobre os próprios EUA. Certamente os acontecimentos dos últimos anos apoiariam esse ponto de vista.

Mas deve haver um limite a essa desconexão. Os EUA podem fazer muita coisa economicamente, contanto que continuem politicamente confiáveis, mas menos se não conseguir isso. Conforme me disse recentemente o economista e capitalista de risco Bill Janeway: "A economia americana atingiu o fundo do poço no inverno de 1932-33, depois que [Herbert] Hoover perdeu toda a credibilidade na resposta à Depressão e a confiança nos bancos desapareceu junto com a confiança no governo".

Pode ser que algum dia a confiança no dólar e a confiança na América venham a convergir novamente.
Rana Foroohar
Fonte: Valor Economico
Texto extraído do boletim SCA
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